17 julho 2007

Regresso ao Passado - Calientes de Contacto

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Cada passo dado pelo corredor fora era uma injecção de confiança.
Redescobria rostos que antes eram difusos; apreciava as minudências das paredes, do chão, do tecto; contabilizava os números das salas, pendurados no topo das portas; e avistei, lá bem ao fundo, o André, o Pedro, a simpática Edite e todos os outros.
Sorri. Naquele dia estava a estrear os meus olhos novos.

Sou monstruosamente míope e não faço ideia porquê.
Não tenho ninguém, na família próxima, que carregue consigo um handicap de seis dioptrias em cada olho. E, no entanto, a miopia atropelou-me, galopante, aos 17 anos de idade e, durante muito tempo, fingi que continuava na plena posse das minhas faculdades visuais, só porque achava que um tipo de pele leitosa, tímido e sardento, ainda mais estranho ficaria de óculos.
Na verdade, o que perpassava pela minha mente não era o impacto estético que poderia causar nos outros. Era sim, não hipotecar as poucas hipóteses que restavam com as outras, as miúdas.

E assim, durante mais de meia dúzia de anos, interpretei, na perfeição, a personagem de Mr. Magoo enquanto jovem, com as merecidas consequências.

Nas amizades que acenavam ao longe, fui dando passos atrás: Muitos pensaram que tinha deixado de lhes falar, mas não, só tinha deixado de os ver.
Outros buzinavam, quando passavam por mim de carro, e eu acenava atabalhoadamente gritando para aqueles simpáticos vultos "Olha! O... o... coiso!"

Na secundária, fui dando passos em frente, literalmente: As últimas carteiras não me deixavam ver o quadro e, por isso, fui avançando, até que um dia nada mais restava à minha frente a não ser a ardósia e os professores. E, olha... a professora de Geografia afinal era um gajo! Bolas! E eu que tinha uma paixão por aquela professora...

E à noite, uma simples ida à saudosa esplanada do Pátio da Vila, era um tormento.
Praticamente tinha que vasculhar de perto todas as mesas, à procura do meu grupo.
Pior: cada vez era mais difícil descobrir no meio daquela confusão, a menina que amava quase platonicamente. Felizmente, ela e a turminha dela tinham lugar fixo.

Assim, relembro com um sorriso condescendente, aquele mês de Abril de 1995 e o dia em que vi a Universidade Autónoma de Lisboa com um novo olhar, proporcionado por um par de lentes de contacto, uma das maiores invenções do passado século.

Foram dias extraordinários, calientes de contacto, porque tudo parecia agora redesenhado pela mão firme de Deus.
As figuras esbatidas ganhavam contornos definidos, uma tarde na Biblioteca Nacional revelou-se um dos primeiros banquetes para os olhos e, acima de tudo, já podia desviar-me melhor do trânsito enlouquecido (ou dos enlouquecidos no trânsito), dos buracos, do lixo das ruas, e da caca dos pombos e dos bobis. Nem tudo são maravilhas.

Que Deus me conceda a dádiva da visão por muitos e bons anos.
Acima de tudo não quero deixar de ver quem mais amo: a minha mãe, o meu pai, o meu irmão, o meu sobrinho e a minha princesa.
Olhos que não veem, coração que não sente? O tanas!
Saudade é uma palavra que cega e mata de amor.

7 comentários:

João Paulo Cardoso disse...

V.C:

"Bem-vinda seja então a esta casa de petiscos. Aqui serve-se um pouco de tudo e para todos um pouco.

Fico à espera de mais visitas e mais comentários seus.
E traga os amigos!"

As palavras acima foram já utilizadas neste blog, a 07 de Março, para dar as boas-vindas a uma amiga que me acompanhou no caminho para o Eldorado, durante quatro meses.

Não sei porquê, fizeste-me lembrar dela...
Ainda bem que deixaste uma pista de pétalas azuis atrás de ti. Vou ter contigo em breve.

Beijos.

ana v. disse...

Delícia de post!
Lembraste-me uma experiência engraçada que tive há uns anos pela primeira vez, e que repito de vez em quando, por puro fascínio: mudar a cor dos olhos, com lentes coloridas. É um luxo da tecnologia dos tempos modernos: muda-se literalmente de olhos e essa mudança pode mudar também, por umas horas, a nossa visão do mundo. Para já não falar do prazer, finalmente possível, de escolher ter os olhos violeta da Elisabeth Taylor, ou os olhos turquesa do Brad Pitt. Aconselho a experiência, é o supremo requinte e custa pouco dinheiro.
Quanto às maravilhas das tuas calientes de contacto (belo trocadilho!), não há só vantagens: perdeste a desculpa para encontrar meninas às apalpadelas. Mas suponho que tudo tem o seu tempo, não é?
bjs
ana

João Paulo Cardoso disse...

Ana:

Mudar a cor dos olhos?!
Por acaso sou declaradamente contra.
Sou a favor da genuinidade.
Senão, vejamos...

- És muito gira, sabias? Gosto muito do teu cabelo louro...

- Por acaso, é pintado...

- Ah, sim? Bem... mas gosto dos teus olhos azuis...

- Lentes de contacto.

- E o teu narizinho arrebitado?

- Rinoplastia.

- O teu sorriso?

- Não tenho dentes. Uso uma prótese.

- As tuas... maminhas?

- Silicone.

- Mais alguma coisa?

- Serei definitivamente mulher a partir de 27 de Julho.

- Como?! Tu... tu... tu és...

- Pois...

Maria Feliz disse...

JP,

Melhor que o texto, só mesmo esta delícia de diálogo imaginário, no último comentário!

Beijos

Mad disse...

JP, continuas a favor da genuinidade mesmo quando se tem vulcões na cara, dentes podres e 30 kilos a mais? Pois é... a fronteira entre o retoque e a reconstrução total é mais fina do que parece.
Bjs.

Anónimo disse...

És tão a favor da genuinidade que demoraste a convencer-te que não vias a ponta de um cor** à frente do nariz.
Bem vindo então ao mundo dos iluminados pelo caliente das lentes... ;)

Como eu te entendo!

Anónimo disse...

Perdoa-me o à vontade, é para aí o meu segundo ou terceiro comentário e já me saio com coisas como a ponta de um... Bom, já estou a abusar, eu sei, já percebi...