
Esta noite sonhei que as ovelhas do meu presépio tinham a língua azul.
Levantei-me às quatro da manhã, enfiei os pezongos nos chinelos esburacados, limpei duas ou três remelas, apertei o roupão em torno do dorso hercúleo (pois, pois...) e lá fui eu cheio de coragem, tipo Indiana Jones em busca da Arca Perdida, neste caso, a pequena arca com os bonecos para o presépio, que só esperava remexer lá para os feriados do princípio de Dezembro.
Subi para cima de uma cadeira para chegar a uma portinhola no topo do armário da sala e, assim que rodei a chave, ouvi balir jingle bells ainda mais desafinadamente que os piores concorrentes do "Família Superstar".
Aquilo era mesmo lancinante, como se estivessem a estripar a Céline Dion.
O caos era generalizado: o menino Jesus chorava, Maria desancava em José, o burro zurrava, a vaquinha mugia, Baltazar, Gaspar e Belchior interpretavam, bêbedos que nem um cacho, os maiores êxitos do Trio Odemira, os camelos blateravam, os patos grasnavam, as galinhas cacarejavam, os coelhos chiavam, os cisnes arensavam e o moleiro não se calava por, alegadamente, a equipa de Belém ter sido prejudicada frente à Académica, no último fim-de-semana.
Peça a peça, fui colocando as figuras empoeiradas no chão da sala.
Cada uma delas foi encostada aos meus lábios (um privilégio que poucos usufruem) e recebeu um severo "Chiuuu!!", porque aquele chinfrim acabaria por acordar os vizinhos que, inevitavelmente chamariam a polícia.
E o que diria eu?
"Ó sr. guarda! Mas se lhe estou a dizer que não era eu que estava a fazer o barulho, era o menino Jesus!"
"Sim, sim! O menino Jesus, os reis magos e as ovelhinhas, não?"
"Exacto! O sr. guarda também tem um presépio assim?"
Mais calmos, alguns dos bonecos de louça lá se fizeram ao caminho, porque apesar de não ter colocado no chão nenhuma cabana com o menino Jesus lá dentro, por tradição, as peças colocam-se em fila indiana e vão... para um sítio qualquer.
Como o que me interessava eram as ovelhas, deixei que reis magos e restante maralha seguissem o seu destino, apenas recomendando que não tropeçassem no cabo da Sportv, avisando desde logo que, se acontecesse alguma coisa, seriam eles a ficar todo o dia prostrados ao telefone, à espera que alguém da Tv Cabo os atendesse.
Juntei então as 219 ovelhas, para averiguar se alguma delas tinha a língua da cor do sangue do Alberto do Mónaco.
Big Problem: Como é que eu abro a boquinha de louça destas figurinhas?
Foi então que se fez luz.
Não só porque a acendi, mas sobretudo porque tive a ideia de contar ao rebanho, que o governo garantiu que ainda não é em 2008 que os portugueses vão pagar menos impostos.
As ovelhas abriram a boca de espanto e eu pude confirmar que nenhuma delas sofria do Orbivírus da família Reoviridae, que possui 24 sorotipos e que afeta ovinos, bovinos e diversas espécies de ruminantes selvagens.
Ou seja, nenhuma tinha o escalope azulado.
Mais descansado, guardei tudo onde estava e fui dormir.
Não sei é se, até ao Natal, a maior parte das ovelhas do meu presépio não terá decidido emigrar para Espanha, onde una oveja no paga tanta contribución.