03 setembro 2007

Conta-me como foi

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Pinhal Novo, 03 de Setembro de 1967.

Um mar de gente apinha-se junto à velha igreja para assistir ao casamento da Belinha Cordas - assim era conhecida por todos - com António Dinis Cardoso, um moço tímido, honesto e trabalhador, que tinha chegado das Beiras poucos anos antes.

Mais prosaicamente, aquele era um casamento entre uma "caramela" e um "ratinho", mas contrariando as diferenças ditadas pelos rótulos regionais, a comunhão de afectos formalizada pelas leis da religião católica assinala hoje 40 anos de trilho comum.

Eu represento apenas metade dos frutos gerados por este amor que resiste e perdura em tempo de relações descartáveis, mas decerto que o meu irmão não se importará de se associar a singela homenagem da data aqui recordada.
E como recordar é viver, sentei-me lado a lado com a mulher vestida de branco na fotografia que, com lampejos saudosistas no olhar que amadureceu ao longo das quatro últimas décadas, lá foi relatando o que a memória recuperava.

Nostálgico como sou, sorvi a viagem no tempo com genuíno êxtase e, já alinhavando mentalmente estas palavras que agora todos leem, incitava-a a continuar.
Conta-me como foi.

O dia amanheceu nervoso, bulicioso e a anunciar uma boda sob intenso calor.
A tua avó não permitia que um segundo fosse gasto em vão e mandou-me para o quarto vestir o belo vestido de noiva. Obviamente que já o tinha experimentado antes, só que foi nesse momento que me apercebi que aquele era mesmo um dos mais importantes dias da minha vida.
E desatei a chorar.

Junto à igreja, devidamente engalanada para o efeito, dezenas de convidados esperavam para ver a noiva, por tradição a última a chegar.
O teu pai já lá estava, longe dos seus melhores dias.
Já explico porquê.

Havia mais convidados do lado da minha família do que da dele, mas a diferença não era grande.
Entrei na Igreja de S. José - essa mesmo que ainda exibe a sua graça centenária ali no jardim - com o coração a palpitar.
Junto ao altar, o teu pai sorriu para mim e percorri os últimos metros da minha vida de solteira num misto de ansiedade e orgulho, que sacudia-me o coração e formava-me um novelo na garganta que custava a engolir.
O teu pai tinha deixado de sorrir, confidenciando-me que estava com uma gigantesca dor de dentes.
Algo que era atenuado pelo então milagroso "Milagron", um preparado analgésico que inibia a dor de dentes mas deixava a língua branca.
Foi mesmo um casamento a três: eu, o teu pai e o "Milagron".

O bastante narigudo Padre José Robalo casou-nos ao princípio da tarde.
Trocámos alianças, beijos e promessas de comunhão eterna. Três coisas que mantemos até hoje.
Saímos da igreja aclamados pelos convidados que nos brindaram com uma chuva de arroz.
Depois seguiu-se a sessão de fotografias.
Muito parecido com o que se faz hoje.

Diferente foi o desaparecimento do teu pai, por largos minutos.
Perguntava pelo meu marido e todos zombavam na minha cara, dizendo a rir que ele tinha fugido.
"O meu marido!"
A expressão arrebatava-me de alto a baixo. Meu Deus, tinha 18 anos e já era uma mulher casada!


Pois, está bem.
Mas que história foi essa do meu pai ter fugido?
Um pouquinho de mistério ficaria a matar nesta crónica do passado.
Vá lá, mãe.
Conta-me como foi.

O teu pai tinha convencido o chefe dele, que também tinha sido convidado, a emprestar-lhe o carro para uma voltinha pelas redondezas.
Acabou por ir quase até Palmela, no Volkswagen "Carocha" do patrão.
Eu lá ia entretendo os convidados, tentando disfarçar a minha preocupação, pois afinal ele andava a conduzir completamente dopado pelo "Milagron".

O copo d' água foi servido na sede do Grupo Desportivo Pinhalnovense, onde, no andar de cima, tinha feito toda a Escola Primária. O teu pai ainda frequentou a velha "nº 1", onde tu fizeste toda a Primária, depois o teu irmão e a partir deste ano o teu sobrinho.

Sim, sim.
Adiante.

Sim.
Pois.
Adiante.

Tirando a dor de dentes do teu pai, que nesta altura já ia no segundo frasco de "Milagron", o copo d' água correu como estava previsto, até que, ao final da tarde, eu e o teu pai escapulimo-nos sem que ninguém nos visse e... fomos ao cinema.

Desculpa?!

Sim.
Fomos ao cinema, a Lisboa.
Como sabes, a sede do velho Grupo fica encostadinha à linha férrea e, por isso, foi bastante engraçado acenarmos aos convidados a partir da janela do comboio, à passagem pelo Grupo.
Quem nos viu ficou de boca aberta.
"Olhem! Os noivos fugiram!"
"A Belinha e o Tony vão no comboio!"
Parecia uma cena tirada da "Aldeia da Roupa Branca".
"Adeus, aldeia! Adeus, linda terra..." , mas voltámos depois da sessão de cinema no velho Condes, onde hoje está o Hard Rock Café...

O filme? "E Tudo o Vento Levou".
Menos a dor de dentes do teu pai, que, embora mais atenuada, ainda durava.
Não seguimos a trama até ao fim, porque tínhamos mesmo que apanhar o último barco e um dos últimos comboios para regressarmos a casa.

Como ouviste, acabou por ser um casamento diferente, mas tudo isto são histórias passadas cada vez mais atraiçoadas pela memória...

E termina a sua viagem no tempo com uma nota de nostalgia na voz.
Gostava que fosse possível oferecer-lhes mais 40 anos de casamento, mas sei que até nos contos de fadas existe a palavra "fim".

De qualquer forma, para que esta seja uma história não mais atraiçoada pela memória, aqui fica a sua eternização à escala global, naquilo a que os filhos da modernidade chamaram de "internet".
Resta-me desejar-lhes muitas felicidades e confessar que é uma honra ser vosso filho.
Amo-os para sempre.

14 comentários:

Maria Feliz disse...

Só tu JP! Lindo mesmo.
Além de seres um tipo com um sentido de humor fantástico, és uma pessoa muito grande.

Beijo enorme:)

João Paulo Cardoso disse...

Flora:
Muito obrigado.
Não sou, de todo, indiferente e insensível a elogios, mas desta vez o mérito que alegadamente possa ter, dilui-se naquilo a que chamo "escrever com amor".

Quando isso acontece, as palavras
- já que se falava de casamento - acasalam quase por magia.
Limito-me a proporcionar-lhes uma boa cama.

Beijos.

ana v. disse...

Muito bonito, JP.
Uma dose de humor qb, o resto pura ternura. Parabéns à caramela e ao ratinho (com o devido respeito) que geraram um Solano de luxo, daqueles que se derretem na boca.

Beijos
Ana

PS: Não recebeste o meu mail?

Anónimo disse...

Visitei poucos blogues na minha curta vida virtual, e se honestamente já te tinha dito que tinhas alguma dificuldade em libertar as palavras, também é com honestidade que reponho a minha opinião; andas a escrever (andar e escrever ao mesmo tempo é difícil, eu sei) muito bem rapaz e devo dizer-te que até agora não há blogue mais agradável de visitar.

Anónimo disse...

Linda narrativa.

Parabens Tia Belinha e Ti Tony.

nf

Anónimo disse...

Estou impressionada, tu ficaste emocionado... :) Um casamento bem diferente e original, que deu belos frutos, pelo menos, nota-se pela tua dedicatória. Parabéns pela bela capacidade de dizeres que amas e que sentes orgulho. Nem toda a gente tem esse dom. Gostei!

Beijo

João Paulo Cardoso disse...

Ana Vidal:
Muito obrigado pelo teu comentário.
Nunca ninguém me tinha chamado "Solano" antes.

Quanto ao e-mail...
Referes-te ao da Negratinta?

Já tinha escrito num "recomentário" que sim, recebi e dei provimento.
Gostava de ter bom retorno, vamos ver...

Beijos.

João Paulo Cardoso disse...

Paulo Cristo:
Ena, que belo elogio vindo de um proeminente professor e não, não estou a falar da barriguita...
É muito gratificante acolher os teus comentários.

Faltam aqui os outros: A minha namorada, o Nelson, o Jorge, a Lena, a Sónia e o Luís, por exemplo...

Tudo gente que raramente comenta, mas enfim...

Já fico contente que me aturem para além da virtualidade implícita a estas coisas.

Todos os outros que aqui comentam, e que não me conhecem pessoalmente, não imaginam como sou chato e complicado...

"Visitei poucos blogues na minha curta vida virtual (...) e devo dizer-te que até agora não há blogue mais agradável de visitar."

Uff...
Parece que a fasquia está a ser colocada muito alto, mas vou tentar, pelo menos, manter o nível.

Um abraço.

João Paulo Cardoso disse...

NF:
Vamos esquecer um pouco a narrativa e atentemos na bela fotografia do Pinhal Novo dos anos 60.

A objectiva não chegou a apanhar, pelo menos nesta foto, mas ali para trás no meio da multidão, há-de estar a tua mãe, então com pouco mais de 10 anos.
Nessa altura ainda éramos ficção científica!!

Um abraço.

João Paulo Cardoso disse...

Susana:
De facto, emocionei-me.

Já estava quase a chorar nas últimas frases.
Mas um homem não chora!!
Nunca!!
Jamais!!

BUÁÁÁÁÁÁÁÁÁÁÁÁ!!!!!!!!!

Anónimo disse...

Para quem conhece os intervenientes, esta foto só por si dispensa explicações.
Mas tu conseguiste fazer jus à foto, escreveste um texto bem inspirado...
E que dizer da história do comboio, baseada em factos verídicos?!
Parabéns (a ti e aos teus pais)
Nelson

Mad disse...

Já foi tudo dito, mas pelo menos deixo aqui os parabéns aos teus pais pelo babosíssimo filho que têm. E a ti pelo que escreves.

João Paulo Cardoso disse...

Nelson:
Cutucado ou não, lá deixaste um comentário!

Obrigado pelos parabéns endereçados à família Cardoso.

Quanto à "história do comboio", é uma das muitas nascidas no Pinhal Novo, terra de ferroviários.

Mandava-te um abraço, mas acho que desta vez é mais apropriado um "Ciao".

João Paulo Cardoso disse...

Mad:
"Foi tudo dito"?

Ora essa!
Sei que não te falta o dom da palavra, ou não tivesses acrescentado mais 25 palavras (e três sinais de pontuação) aos (exagerados) elogios da turba, ou da turma para não estar também eu a exagerar.

Beijos.