154
Pinhal Novo, 03 de Setembro de 1967.
Um mar de gente apinha-se junto à velha igreja para assistir ao casamento da Belinha Cordas - assim era conhecida por todos - com António Dinis Cardoso, um moço tímido, honesto e trabalhador, que tinha chegado das Beiras poucos anos antes.
Mais prosaicamente, aquele era um casamento entre uma "caramela" e um "ratinho", mas contrariando as diferenças ditadas pelos rótulos regionais, a comunhão de afectos formalizada pelas leis da religião católica assinala hoje 40 anos de trilho comum.
Eu represento apenas metade dos frutos gerados por este amor que resiste e perdura em tempo de relações descartáveis, mas decerto que o meu irmão não se importará de se associar a singela homenagem da data aqui recordada.
E como recordar é viver, sentei-me lado a lado com a mulher vestida de branco na fotografia que, com lampejos saudosistas no olhar que amadureceu ao longo das quatro últimas décadas, lá foi relatando o que a memória recuperava.
Nostálgico como sou, sorvi a viagem no tempo com genuíno êxtase e, já alinhavando mentalmente estas palavras que agora todos leem, incitava-a a continuar.
Conta-me como foi.
O dia amanheceu nervoso, bulicioso e a anunciar uma boda sob intenso calor.
A tua avó não permitia que um segundo fosse gasto em vão e mandou-me para o quarto vestir o belo vestido de noiva. Obviamente que já o tinha experimentado antes, só que foi nesse momento que me apercebi que aquele era mesmo um dos mais importantes dias da minha vida.
E desatei a chorar.
Junto à igreja, devidamente engalanada para o efeito, dezenas de convidados esperavam para ver a noiva, por tradição a última a chegar.
O teu pai já lá estava, longe dos seus melhores dias.
Já explico porquê.
Havia mais convidados do lado da minha família do que da dele, mas a diferença não era grande.
Entrei na Igreja de S. José - essa mesmo que ainda exibe a sua graça centenária ali no jardim - com o coração a palpitar.
Junto ao altar, o teu pai sorriu para mim e percorri os últimos metros da minha vida de solteira num misto de ansiedade e orgulho, que sacudia-me o coração e formava-me um novelo na garganta que custava a engolir.
O teu pai tinha deixado de sorrir, confidenciando-me que estava com uma gigantesca dor de dentes.
Algo que era atenuado pelo então milagroso "Milagron", um preparado analgésico que inibia a dor de dentes mas deixava a língua branca.
Foi mesmo um casamento a três: eu, o teu pai e o "Milagron".
O bastante narigudo Padre José Robalo casou-nos ao princípio da tarde.
Trocámos alianças, beijos e promessas de comunhão eterna. Três coisas que mantemos até hoje.
Saímos da igreja aclamados pelos convidados que nos brindaram com uma chuva de arroz.
Depois seguiu-se a sessão de fotografias.
Muito parecido com o que se faz hoje.
Diferente foi o desaparecimento do teu pai, por largos minutos.
Perguntava pelo meu marido e todos zombavam na minha cara, dizendo a rir que ele tinha fugido.
"O meu marido!"
A expressão arrebatava-me de alto a baixo. Meu Deus, tinha 18 anos e já era uma mulher casada!
Pois, está bem.
Mas que história foi essa do meu pai ter fugido?
Um pouquinho de mistério ficaria a matar nesta crónica do passado.
Vá lá, mãe.
Conta-me como foi.
O teu pai tinha convencido o chefe dele, que também tinha sido convidado, a emprestar-lhe o carro para uma voltinha pelas redondezas.
Acabou por ir quase até Palmela, no Volkswagen "Carocha" do patrão.
Eu lá ia entretendo os convidados, tentando disfarçar a minha preocupação, pois afinal ele andava a conduzir completamente dopado pelo "Milagron".
O copo d' água foi servido na sede do Grupo Desportivo Pinhalnovense, onde, no andar de cima, tinha feito toda a Escola Primária. O teu pai ainda frequentou a velha "nº 1", onde tu fizeste toda a Primária, depois o teu irmão e a partir deste ano o teu sobrinho.
Sim, sim.
Adiante.
Sim.
Pois.
Adiante.
Tirando a dor de dentes do teu pai, que nesta altura já ia no segundo frasco de "Milagron", o copo d' água correu como estava previsto, até que, ao final da tarde, eu e o teu pai escapulimo-nos sem que ninguém nos visse e... fomos ao cinema.
Desculpa?!
Sim.
Fomos ao cinema, a Lisboa.
Como sabes, a sede do velho Grupo fica encostadinha à linha férrea e, por isso, foi bastante engraçado acenarmos aos convidados a partir da janela do comboio, à passagem pelo Grupo.
Quem nos viu ficou de boca aberta.
"Olhem! Os noivos fugiram!"
"A Belinha e o Tony vão no comboio!"
Parecia uma cena tirada da "Aldeia da Roupa Branca".
"Adeus, aldeia! Adeus, linda terra..." , mas voltámos depois da sessão de cinema no velho Condes, onde hoje está o Hard Rock Café...
O filme? "E Tudo o Vento Levou".
Menos a dor de dentes do teu pai, que, embora mais atenuada, ainda durava.
Não seguimos a trama até ao fim, porque tínhamos mesmo que apanhar o último barco e um dos últimos comboios para regressarmos a casa.
Como ouviste, acabou por ser um casamento diferente, mas tudo isto são histórias passadas cada vez mais atraiçoadas pela memória...
E termina a sua viagem no tempo com uma nota de nostalgia na voz.
Gostava que fosse possível oferecer-lhes mais 40 anos de casamento, mas sei que até nos contos de fadas existe a palavra "fim".
De qualquer forma, para que esta seja uma história não mais atraiçoada pela memória, aqui fica a sua eternização à escala global, naquilo a que os filhos da modernidade chamaram de "internet".
Resta-me desejar-lhes muitas felicidades e confessar que é uma honra ser vosso filho.
Amo-os para sempre.
14 comentários:
Só tu JP! Lindo mesmo.
Além de seres um tipo com um sentido de humor fantástico, és uma pessoa muito grande.
Beijo enorme:)
Flora:
Muito obrigado.
Não sou, de todo, indiferente e insensível a elogios, mas desta vez o mérito que alegadamente possa ter, dilui-se naquilo a que chamo "escrever com amor".
Quando isso acontece, as palavras
- já que se falava de casamento - acasalam quase por magia.
Limito-me a proporcionar-lhes uma boa cama.
Beijos.
Muito bonito, JP.
Uma dose de humor qb, o resto pura ternura. Parabéns à caramela e ao ratinho (com o devido respeito) que geraram um Solano de luxo, daqueles que se derretem na boca.
Beijos
Ana
PS: Não recebeste o meu mail?
Visitei poucos blogues na minha curta vida virtual, e se honestamente já te tinha dito que tinhas alguma dificuldade em libertar as palavras, também é com honestidade que reponho a minha opinião; andas a escrever (andar e escrever ao mesmo tempo é difícil, eu sei) muito bem rapaz e devo dizer-te que até agora não há blogue mais agradável de visitar.
Linda narrativa.
Parabens Tia Belinha e Ti Tony.
nf
Estou impressionada, tu ficaste emocionado... :) Um casamento bem diferente e original, que deu belos frutos, pelo menos, nota-se pela tua dedicatória. Parabéns pela bela capacidade de dizeres que amas e que sentes orgulho. Nem toda a gente tem esse dom. Gostei!
Beijo
Ana Vidal:
Muito obrigado pelo teu comentário.
Nunca ninguém me tinha chamado "Solano" antes.
Quanto ao e-mail...
Referes-te ao da Negratinta?
Já tinha escrito num "recomentário" que sim, recebi e dei provimento.
Gostava de ter bom retorno, vamos ver...
Beijos.
Paulo Cristo:
Ena, que belo elogio vindo de um proeminente professor e não, não estou a falar da barriguita...
É muito gratificante acolher os teus comentários.
Faltam aqui os outros: A minha namorada, o Nelson, o Jorge, a Lena, a Sónia e o Luís, por exemplo...
Tudo gente que raramente comenta, mas enfim...
Já fico contente que me aturem para além da virtualidade implícita a estas coisas.
Todos os outros que aqui comentam, e que não me conhecem pessoalmente, não imaginam como sou chato e complicado...
"Visitei poucos blogues na minha curta vida virtual (...) e devo dizer-te que até agora não há blogue mais agradável de visitar."
Uff...
Parece que a fasquia está a ser colocada muito alto, mas vou tentar, pelo menos, manter o nível.
Um abraço.
NF:
Vamos esquecer um pouco a narrativa e atentemos na bela fotografia do Pinhal Novo dos anos 60.
A objectiva não chegou a apanhar, pelo menos nesta foto, mas ali para trás no meio da multidão, há-de estar a tua mãe, então com pouco mais de 10 anos.
Nessa altura ainda éramos ficção científica!!
Um abraço.
Susana:
De facto, emocionei-me.
Já estava quase a chorar nas últimas frases.
Mas um homem não chora!!
Nunca!!
Jamais!!
BUÁÁÁÁÁÁÁÁÁÁÁÁ!!!!!!!!!
Para quem conhece os intervenientes, esta foto só por si dispensa explicações.
Mas tu conseguiste fazer jus à foto, escreveste um texto bem inspirado...
E que dizer da história do comboio, baseada em factos verídicos?!
Parabéns (a ti e aos teus pais)
Nelson
Já foi tudo dito, mas pelo menos deixo aqui os parabéns aos teus pais pelo babosíssimo filho que têm. E a ti pelo que escreves.
Nelson:
Cutucado ou não, lá deixaste um comentário!
Obrigado pelos parabéns endereçados à família Cardoso.
Quanto à "história do comboio", é uma das muitas nascidas no Pinhal Novo, terra de ferroviários.
Mandava-te um abraço, mas acho que desta vez é mais apropriado um "Ciao".
Mad:
"Foi tudo dito"?
Ora essa!
Sei que não te falta o dom da palavra, ou não tivesses acrescentado mais 25 palavras (e três sinais de pontuação) aos (exagerados) elogios da turba, ou da turma para não estar também eu a exagerar.
Beijos.
Enviar um comentário