
Aquele bloco de notas quadriculado da série Papyrus, da Ambar, andava aos caídos lá por casa.
Por vezes alguém rabiscava nele qualquer coisa, arrancava-lhe uma folha e deixava-o de novo entregue a si mesmo.
Até que peguei nele - quase 20 anos depois do que deveria ter feito com um da sua espécie -, desenhei-lhe uma frigideira fumegante e escrevi em letras toscas "First Time Cooking".
Tinha começado uma bela aventura.
Aos 36 anos não sei cozinhar.
Não será o mais terrível dos handicaps, mas era uma lacuna que tardava em ser dizimada pelo assombroso acto de coragem que representa vestir um avental, respirar fundo e rezar aos deuses para não enviar a cozinha pelos ares, para bem junto deles.
"First Time Cooking".
Arroz Branco numa página. Ovos Mexidos na página seguinte.
O bloco quadriculado tem só duas páginas, mas já é tão acarinhado por mim como a Bíblia lá de casa. E assim acontece por cinco razões:
- Por vergonha: Bolas, já estava mais que na altura de aprender a cozinhar.
- Por necessidade: Estou há 15 dias sozinho em casa e não posso estar sempre a ir comer fora, ou a trazer comida feita para casa. E preciso alimentar a barrigona.
- Por crescimento pessoal: Se muitos aprendem a cozinhar, porque não aprenderia eu?
- Por curiosidade: Depois de frustradas tentativas há alguns anos, conseguiria fazer alguma coisa comestível?
- Por amor: Motivado pela mulher que amo, tudo parece mais simples.
E foi com todo o carinho, paciência e amor da minha namorada, que numa noite de quarta-feira, seguindo as suas indicações, comecei a escrever "o livro" que jamais publicarei. Por pudor e porque é tão estúpido como um rinoceronte de mini-saia cor de rosa.
"First Time Cooking".
E chegou o dia.
Propunha-me fazer algo que uma criança de cinco anos conseguisse fazer e não me refiro a tirar macacos do nariz e a colá-los debaixo do tampo da mesa.
Arroz branco com atum.
Eu sei que para a maior parte de vós, isto é tão simples como beber um copo de água, mas para mim é algo susceptível de eriçar os pêlos das costas e causar formigueiro na planta dos pés. Por isso benzi a cozinha e chorei agarrado a uma cebola, por não ter meia dúzia de cozinheiros às minhas ordens.
As lágrimas, por causa da cebola que picava enquanto sonhava ser Maria Antonieta, acordaram-me do devaneio pantagruélico. Depois piquei um alho, cobri o fundo de um tacho com azeite, coloquei um pouquinho de sal e pus ao lume.
"Olha, até está parecido com o que tenho visto na televisão..."
As indicações seguintes falavam em deixar azeite, alho e cebola ao lume, até que esta ficasse "translúcida".
Nem branca, nem loura, nem preta.
"Translúcida".
Como medir a "translucidez" de uma cebola? Será necessário o auxílio de críticos de arte?
Perguntar-se-á à própria cebola, enquanto é a vez desta chorar, em crepitante agonia?
" - Ouve lá, peço desculpa de te estar a magoar, eu sei que 'tá a ficar um calorzinho insuportável aí dentro e não sei que mais, mas essa corzinha em ti é assim a modos que translúcida, não é? Vá lá, ajuda-me nisto! Estás translúcida ou não?"
Como quem cala consente, afoguei-a com duas canequinhas de água e coloquei em lume alto.
Lavei o arroz e, quando a água estava a ferver, juntei uma canequinha de arroz agulha.
Baixei o lume, tapei a panela, voltei a benzer a cozinha e esperei os 12, 13 minutos mais longos da minha vida na cozinha.
Estava na hora.
Imaginava o arroz mais preto que o Pelé a rebolar nu numa mina de carvão.
A cebola certamente teria se vingado, comido o fundo da panela, fugido e estaria a preparar uma revolta de frutas e legumes.
Se fosse um desses meninos gays que falam da vida social na tv, talvez até gostasse de ter bananas e courgettes a investirem militarmente sobre mim. Como não sou, tive medo e afastei a ideia de tão inusitado motim.
Levantei a panela. Ao longe soavam rufos de tambores, para alimentar o suspense enquanto eu ainda morria de fome.
"Olha! Continua parecido com aquilo que vejo na televisão!"
Pus metade do arroz num prato, juntei o conteúdo de duas latas de atum, fechei os olhos, abri a boca e provei.
"Olha, sabe bem! Quem diria?!"
Não foi das melhores refeições que comi na vida, mas tirando bifes esturricados com batatas fritas e ovos dizimados, digo, estrelados, aquela tinha sido a minha primeira experiência com os tachos.
E tinha corrido bem.
O arroz estava bom. E para a próxima ainda vai estar melhor.
Quero agradecer à minha musa inspiradora, ao arroz Cigala e às seguintes entidades:
Santa Rita de Cássia, Odin, São Cristóvão, Santa Bárbara, Maria de Lurdes Modesto, Mercado Abastecedor da Região de Lisboa, Iemanjá e Nossa Senhora de Fátima.
7 comentários:
Repetindo o meu comentário para ti, mas no blog da Flora, FAZ UM LIVRO (e não é de cozinha)!
Madalena:
Se não tiver imaginação para mais (duvido... esta cabeça está sempre a latejar...), pode ser que, pelo menos, reúna alguna devaneios do "Eldorado" e publique em livro.
"Eldorado - O Livro"
(não me parece nada mal, de facto...)
Beijos.
Achas que se me agarrar a essas entidades, também pode correr bem comigo? Não sei se arrisque, é que para mim a cozinha é um bicho de sete cabeças. ODEIO...
Se fosse arquitecta esquecia-me, de certeza, que as casas precisam de uma cozinha...
Sabes? Acho que vou mesmo agarrar-me aos teus santos, é que o meu tem sido o caldo Knorr e parece que ele não quer nada comigo. Santa Rita de Cássia então, não é?
Um beijo
Não se pode dizer que goste muito de cozinhar, mas que isso está a mudar, lá isso está.
Ainda ontem experimentei dois ovinhos mexidos que foram comidos como se não houvesse amanhã.
Cozinhar, conduzir, saber nadar...
Tudo coisas que podem ser necessárias a determinado momento da nossa vida.
Mais vale saber fazê-las.
E, como para mim a idade não é limite, se tiver a saúde comigo, quero fazer muito mais coisas.
Esse é o caminho para o Eldorado.
Voltando à cozinha:
Vai com calma, experimenta sem pressões de qualquer espécie, põe uma musiquinha a tocar, segue as instruções, relaxa e vais ver que tudo corre bem.
Se não... tenta no dia a seguir.
Beijos.
Quando estiveres pronto para o famoso strogonoff de camarao, apita :)
nf
Null Fame:
Tenho muito que refogar até chegar aos meandros da tua arte culinária.
Pelo menos a fama precede-te...
Mas enquanto não queimar os delicados dedinhos que escrevem estas parvoíces e a cozinha não for pelos ares, vou continuar a tentar...
Ora... deixa cá ver...
"Pataniscas de bacalhau".
Como é que faz isto?...
Ah, pois...
Eu também não sou la grande espingarda na cozinha!!!!Desenrasco-me
Tu vais ver que ainda vais sair um grande chefe de cozinha!!!
Enviar um comentário