147Aquele bloco de notas quadriculado da série Papyrus, da Ambar, andava aos caídos lá por casa.
Por vezes alguém rabiscava nele qualquer coisa, arrancava-lhe uma folha e deixava-o de novo entregue a si mesmo.
Até que peguei nele - quase 20 anos depois do que deveria ter feito com um da sua espécie -, desenhei-lhe uma frigideira fumegante e escrevi em letras toscas
"First Time Cooking".
Tinha começado uma bela aventura.
Aos 36 anos não sei cozinhar.Não será o mais terrível dos handicaps, mas era uma lacuna que tardava em ser dizimada pelo assombroso acto de coragem que representa vestir um avental, respirar fundo e rezar aos deuses para não enviar a cozinha pelos ares, para bem junto deles.
"First Time Cooking".
Arroz Branco numa página. Ovos Mexidos na página seguinte.
O bloco quadriculado tem só duas páginas, mas já é tão acarinhado por mim como a Bíblia lá de casa. E assim acontece por cinco razões:
- Por vergonha: Bolas, já estava mais que na altura de aprender a cozinhar.
- Por necessidade: Estou há 15 dias sozinho em casa e não posso estar sempre a ir comer fora, ou a trazer comida feita para casa. E preciso alimentar a barrigona.
- Por crescimento pessoal: Se muitos aprendem a cozinhar, porque não aprenderia eu?
- Por curiosidade: Depois de frustradas tentativas há alguns anos, conseguiria fazer alguma coisa comestível?
- Por amor: Motivado pela mulher que amo, tudo parece mais simples.
E foi com todo o carinho, paciência e amor da minha namorada, que numa noite de quarta-feira, seguindo as suas indicações, comecei a escrever "o livro" que jamais publicarei. Por pudor e porque é tão estúpido como um rinoceronte de mini-saia cor de rosa.
"First Time Cooking".
E chegou o dia.
Propunha-me fazer algo que uma criança de cinco anos conseguisse fazer e não me refiro a tirar macacos do nariz e a colá-los debaixo do tampo da mesa.
Arroz branco com atum.
Eu sei que para a maior parte de vós, isto é tão simples como beber um copo de água, mas para mim é algo susceptível de eriçar os pêlos das costas e causar formigueiro na planta dos pés. Por isso benzi a cozinha e chorei agarrado a uma cebola, por não ter meia dúzia de cozinheiros às minhas ordens.
As lágrimas, por causa da cebola que picava enquanto sonhava ser Maria Antonieta, acordaram-me do devaneio pantagruélico. Depois piquei um alho, cobri o fundo de um tacho com azeite, coloquei um pouquinho de sal e pus ao lume.
"Olha, até está parecido com o que tenho visto na televisão..."As indicações seguintes falavam em deixar azeite, alho e cebola ao lume, até que esta ficasse "translúcida".
Nem branca, nem loura, nem preta.
"Translúcida".
Como medir a "translucidez" de uma cebola? Será necessário o auxílio de críticos de arte?
Perguntar-se-á à própria cebola, enquanto é a vez desta chorar, em crepitante agonia?
" - Ouve lá, peço desculpa de te estar a magoar, eu sei que 'tá a ficar um calorzinho insuportável aí dentro e não sei que mais, mas essa corzinha em ti é assim a modos que translúcida, não é? Vá lá, ajuda-me nisto! Estás translúcida ou não?"Como quem cala consente, afoguei-a com duas canequinhas de água e coloquei em lume alto.
Lavei o arroz e, quando a água estava a ferver, juntei uma canequinha de arroz agulha.
Baixei o lume, tapei a panela, voltei a benzer a cozinha e esperei os 12, 13 minutos mais longos da minha vida na cozinha.
Estava na hora.
Imaginava o arroz mais preto que o Pelé a rebolar nu numa mina de carvão.
A cebola certamente teria se vingado, comido o fundo da panela, fugido e estaria a preparar uma revolta de frutas e legumes.
Se fosse um desses meninos gays que falam da vida social na tv, talvez até gostasse de ter bananas e courgettes a investirem militarmente sobre mim. Como não sou, tive medo e afastei a ideia de tão inusitado motim.
Levantei a panela. Ao longe soavam rufos de tambores, para alimentar o suspense enquanto eu ainda morria de fome.
"Olha! Continua parecido com aquilo que vejo na televisão!"Pus metade do arroz num prato, juntei o conteúdo de duas latas de atum, fechei os olhos, abri a boca e provei.
"Olha, sabe bem! Quem diria?!"Não foi das melhores refeições que comi na vida, mas tirando bifes esturricados com batatas fritas e ovos dizimados, digo, estrelados, aquela tinha sido a minha primeira experiência com os tachos.
E tinha corrido bem.
O arroz estava bom. E para a próxima ainda vai estar melhor.
Quero agradecer à minha musa inspiradora, ao arroz Cigala e às seguintes entidades:
Santa Rita de Cássia, Odin, São Cristóvão, Santa Bárbara, Maria de Lurdes Modesto, Mercado Abastecedor da Região de Lisboa, Iemanjá e Nossa Senhora de Fátima.